Escutei o vento vindo e corri para segurar a porta. A brisa leve que entrava me embalava a alma e eu pensei, deusolivre essa porta fechar. Passei duas luas plantada ali com o pé tremulando para permitir a ajuda e perceber que a brisa vinha de dentro da própria casa. A porta não ia fechar. Não agora. Não ainda. Os convites tinham sido enviados. Cartas endereçadas a moradas gravadas na memória que contavam sobre a casa, sobre as caixas, sobre os objetos espalhados pelo chão. Sobre a coragem da própria casa. Enviei cartas, também, a quem já morreu. Estamos aqui. E carimbei as cartas, também, com a tua coragem. Entre a tinta do carimbo e a força para tal gesto me lembrei daquela foto. Recortada com os dedos, há alguns anos atrás, em meio a um discurso de raiva. Foi preciso muitas outras casas para entender que o discurso da raiva era quente e declamava também palavras de amor e coragem. Tem uma série de coragens nunca escritas. E foi preciso dançar um tanto para parir tais palavras. No corpo das cartas convite, um poderoso pedido. Que abria outra porta. De quem sempre deu um jeito nos objetos, nas caixas, nas palavras. Nas mudanças. Na falta de endereço. Dessa vez não. Não estou disposta a empilhar-me sozinha. Pariu-se uma casa de vínculos. Intitulada ajuda. Descrita com fragilidade e força no mesmo corpo. O pedido, que parece simples, tem poder imensurável e alimenta a alma. Ah, minha gente, botem mais água no feijão. Isso, botem mais água no feijão. A primavera dessa vez me chega junto com o outono. Deusolivre não existissem os paradoxos que permitem esse tipo de coisa estranha acontecer dentro da gente. Esse pássaro preto que agora me bica a porta lembrou aquele Abril, há muitos anos atrás. Foi uma carta convite a mim mesma. Cavar na chuva. Se me dissessem a quantidade de terra a mover eu teria pego a enxada na mesma. Mas do buraco à um broto de planta é tempo. Feliz, de enquanto isso, dançarmos em companhia conversando com as sementes.
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